Em uma noite de São Paulo, ao bater em um carro, o motoqueiro quebrou a perna e ficou em coma. Ele e todos que se machucam com alguma gravidade no trânsito brasileiro têm direito a receber uma indenização. É dinheiro do DPVAT, o seguro obrigatório.
Claro, se você cair do cavalo, se machucar jogando bola ou em uma briga, não tem direito a receber um centavo desse benefício. Só que mesmo nesses casos, o pagamento saiu. Como?
“Nós observamos vários casos absurdos. Nós não temos dúvida alguma de que as fraudes podem chegar a até R$ 1 bilhão ao ano em todo o país”, afirma o delegado da Polícia Federal Marcelo Freitas.
Em 2014, os donos de carros, motos, ônibus e caminhões pagaram quase R$ 8,5 bilhões de seguro obrigatório, o DPVAT. Por lei, 45% têm que ir para o Sistema Único de Saúde (SUS) e 5% para o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). A outra metade é para pagar as vítimas de acidentes.
Quando a polícia diz que as fraudes representam R$ 1 bilhão por ano, significa que 25% do valor destinado às indenizações em 2014 estariam sendo usado indevidamente. “Uma completa ausência de controle, uma absoluta ausência de fiscalização”, diz Freitas.
Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Nesses estados, em uma investigação recente da Polícia Federal e do Ministério Público, foi possível descobrir o caminho da fraude, que começa com uma mentira e termina com o dinheiro no bolso dos golpistas.
Gildemar trabalha em uma fazenda em Janaúba, Minas Gerais. No ano passado, ele caiu do cavalo e quebrou o pé. Diz que uma mulher o procurou e falou para ele mentir que tinha sofrido um acidente de moto.
“Falou pra mim, pra fazer uma ocorrência como tivesse caído de moto. Naquele desespero, já machucado, ela falou: ‘não, nós temos que fazer isso, vai sair um dinheiro pra nós. Vamos fazer isso, vamos fazer’. Eu peguei e fiz”, conta o trabalhador rural Gildemar Bispo de Jesus.
Ele recebeu cerca de R$ 1,7 mil do seguro obrigatório. Desse total, a golpista embolsou R$ 200. “Admito que eu menti também, mas porque eu fiz induzido”, aponta Gildemar.
O homem que caiu do cavalo foi procurado por uma 'atravessadora', uma golpista que se passa por despachante e promete resolver tudo em troca de uma porcentagem do seguro. Os fraudadores costumam ficar em escritórios perto dos hospitais ou mesmo dentro dos setores de emergência médica, à espera de novos clientes.
“Pedimos que a Polícia Federal tomasse essas providências no sentido de inibir ou de encontrar uma saída pra que esse tipo de profissional não tenha acesso”, conta o superintendente da Santa Casa de Montes Claros, Maurício Souza e Silva.
Segundo a Polícia Federal, outro golpe começou em um campinho de futebol. Leomar Miranda Santos é presidente da Câmara de Vereadores de Rubelita (MG), município de sete mil habitantes.
Fantástico: O senhor joga bola?
Leomar: Jogo bola.
Fantástico: Chuta com que perna?
Leomar: Com a direita.
Com autorização da Justiça, os telefonemas dos golpistas foram gravados. Em uma conversa, dois homens falam sobre Leomar.
Suspeito 1: Eu vi Leomar. Na verdade, ele caiu, se machucou jogando bola, né? Comenta nada com ninguém, não. Beleza? Falei: “Não, beleza.”
Fantástico: O senhor caiu de moto ou caiu jogando bola?
Leomar: Me acidentei de moto.
Fantástico: Quando foi isso?
Leomar: Foi dia...
Fantástico: Mês, por exemplo.
Leomar: Mês de maio. Dia 13 de maio. Se eu não me engano, dia 13 de maio.
No Boletim de Ocorrência, o acidente foi em 13 de maio de 2014. A investigação concluiu que as informações do BO são falsas.
Leomar: Eu quebrei o tornozelo direito.
Fantástico: Quanto o senhor recebeu de DPVAT?
Leomar: R$ 7.087, se não me engano.
Fantástico: O senhor agiu de má fé?
Leomar: De forma alguma. Provarei isso, se necessário.
Comprovada a irregularidade, o dinheiro das fraudes tem que ser devolvido.
De acordo com as investigações, policiais civis também faziam parte do esquema. Em uma delegacia de Montes Claros (MG), um único investigador chegou a fazer, em um ano, seis mil boletins de ocorrência. Todos de acidente de trânsito.
Fernando Lopes das Neves, o 'Caveirinha', é policial há 18 anos. Segundo o Ministério Público, o investigador de Montes Claros fazia ele próprio os boletins com informações falsas e também permitia que outros usassem a senha dele para acessar o sistema da polícia.
“Identificamos que a senha desse policial foi utilizada de dentro das diversas empresas que intermediavam o pagamento desse seguro”, conta o promotor de Justiça Guilherme Fernandez Silva.
O investigador foi preso em abril de 2015, acusado de receber R$ 100 de propina a cada boletim forjado. E em maio de 2015, respondia em liberdade. O Fantástico tentou falar com ele, mas nem o policial, nem o advogado responderam.
O último passo do golpe é conseguir um laudo com informações falsas, assinado por um médico. O valor da indenização paga pelo DPVAT varia conforme a lesão, que tem que ser grave e provocar invalidez permanente total ou parcial.
“É a lesão que se perpetua no tempo, ou seja, perda da utilização total daquele membro”, explica o professor de medicina legal da USP Henrique Soares.
Invalidez permanente: a indenização é de até R$ 13,5 mil. Se o acidente não foi tão grave, mas houve despesas com médico e hospital, a pessoa tem direito a até R$ 2,7 mil. Em caso de morte, o valor é R$ 13,5 mil.
Uma mulher, que não quis se identificar, foi procurada por um golpista, que conseguiu liberar o dinheiro do seguro falsificando os atestados, sem fazer nenhuma perícia. “Ele só pegou o documento, entregou para o médico e pediu pra mim ir embora: ‘pode ficar tranquila que vai dar tudo certo’. Eu não vi o médico”, conta ela.
A Seguradora Líder é a responsável pelo pagamento das indenizações. Esta semana, o Ministério Público deve entrar com uma ação civil pública contra a empresa. “A investigação aponta que há sim uma participação de dentro da seguradora Líder pra facilitar os pagamentos de fraude”, afirma Guilherme Fernandez Silva.
A seguradora nega e diz que as fraudes não chegam a R$ 1 bilhão por ano, como afirma a Polícia Federal. “Nós temos um controle de qualidade, nós fazemos auditoria. Poderá haver problema? Poderá haver problema. Afinal de contas é um país grande. Mas nós temos um cuidado muito grande, fiscalizamos com a maior intensidade possível. Fraudes efetivamente não chegam a 1% do que efetivamente acontece”, afirma o presidente da Seguradora Líder, Ricardo Xavier.
Ou seja, para a seguradora, as fraudes não somam R$ 40 milhões por ano. E a empresa recomenda que as pessoas deem entrada no pedido de indenização por conta própria. “Se a pessoa procurar uma da nossa rede autorizada, que tem 7.880 pontos de atendimento em todo Brasil, em todos os municípios, terá o atendimento gratuito”, aponta o presidente da Seguradora Líder.
“As fraudes ao seguro DPVAT estão acontecendo em cidades de Norte a Sul do país de maneira absolutamente impune, razão pela qual os órgãos têm que agir de maneira firme evitando que essas fraudes possam persistir”, alerta Marcelo Freitas.
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